Nos evangelhos canônicos, Maria
Madalena (3-63) é a personagem feminina mais importante e controvertida. Sem
contar as repetições, ela aparece doze vezes nos evangelhos. Os Atos dos
Apóstolos simplesmente ignoram a sua pessoa. Os traços da ação e personalidade
de Madalena nos canônicos são: apóstola que acompanha Jesus desde a Galileia
(cf. Lc 8,1-3); mulher possessa de sete demônios, os quais são expulsos por
Jesus (cf. Mc 16,9), capacitando-a para o serviço do Reino; mulher que sustenta
financeiramente a Jesus (cf. Lc 8,2); testemunha da morte, enterro e
ressurreição de Jesus. Na tradição da literatura apócrifa (dez livros),
Madalena aparece como: companheira, esposa/consorte, amada de Jesus; não
prostituta; personificação terrena da gnose/ sabedoria; mulher que conhecia o
todo; apóstola e confidente de Jesus; mestra nos ensinamentos de Jesus.
O Evangelho de Maria
Madalena é uma preciosidade de informações sobre o papel apostólico exercido
por Madalena, que infelizmente não entrou na lista dos livros inspirados.
Escrito, possivelmente, no ano 150 da Era Comum, esse evangelho, em sua versão
copta (língua do Egito), foi encontrado em vasos enterrados perto de um
mosteiro, no Alto Egito, em uma localidade chamada Nag Hammadi. A Madalena
desse evangelho se parece com a dos evangelhos canônicos, com a diferença de
que, no apócrifo, ela assume seu papel de mulher apóstola. Jesus revela-lhe
ensinamentos, os quais Ele transmite aos apóstolos. Pedro (1 a.C.-67 d.C.),
André (?-60) e Levi (Mateus, ?-c.72) são os interlocutores explícitos, e os
dois primeiros reagem contra a mulher Madalena, não aceitando sua condição de
mestra e apóstola.
O final do evangelho
diz que, após os ensinamentos de Madalena, os discípulos saem a anunciar o
evangelho segundo Maria Madalena. Isso só foi possível porque Levi conseguiu
fazer que Pedro, André e os apóstolos compreendessem que Madalena era a
preferida de Jesus e Sua apóstola. Ela falava a verdade sobre os ensinamentos
de Jesus. Na palavra de homem, Madalena é confirmada na sua ação. O coração
deles se abre para ouvir Madalena e anunciar seu evangelho. Pistis Sophia (Fé
Sabedoria) está estruturado em forma de diálogo entre Jesus ressuscitado, Maria
Madalena, Maria, a mãe de Jesus, Salomé, Marta e os onze apóstolos. O conteúdo
da revelação é expressamente gnóstico. Notório é o destaque dado à pessoa de
Madalena. É ela quem dirige a Jesus a maioria das perguntas, comenta o sentido
das respostas e é louvada pelo mestre por sua sabedoria e presença do Espírito.
O Evangelho de Tomé,
nos textos datados do ano 140 E.C., cita duas vezes Maria Madalena. No primeiro
(Dito 21), ela pergunta a Jesus a quem se parecem os discípulos e, no final do
evangelho (Dito 114), Pedro toma a palavra e pede que Jesus expulse Madalena do
meio deles, pois as mulheres não são dignas da Vida, do Reino de Deus. Jesus
responde com ironia a Pedro e valoriza o papel da mulher, do feminino, e confirma
a ideia gnóstica de que o feminino era o lado ruim da criação. a ideia gnóstica
de que o feminino era o lado ruim da criação.
O Evangelho de
Nicodemos, escrito do século V E.C., apresenta o sofrimento de Madalena pela
morte por crucifixão de Jesus e a sua decisão de levar ao conhecimento do
Império Romano e ao mundo as atrocidades cometidas por Pilatos e os ímpios
judeus.
O Evangelho de Filipe,
datado na metade do século II e segunda metade do século III E.C., é um escrito
gnóstico. Nele, assim como em Perguntas de Maria, Madalena é apresentada como
companheira de Jesus. O livro da ressurreição de Cristo do apóstolo Bartolomeu
(?-51), escrito dos séculos VII ao VIII E.C., ao distinguir entre a multidão
das mulheres que estavam no sepulcro, na manhã da ressurreição, fala de
Madalena como mulher que foi libertada da mão de Jesus por Satanás e não como
prostituta. Salomé, sim, é denominada de “a tentadora”.Também nesse evangelho,
Jesus ressuscitado aparece a Maria, mãe de Jesus, e não a Madalena. Outros escritos
apócrifos, como Exegese em torno da alma, embora não cite explicitamente o nome
de Madalena, oferece reflexões em torno de sua pessoa, como o mito de pecadora
arrependida.
A tradição judaica,
hostil a Jesus, também ensinou que Maria Madalena era adúltera. O Talmude chega
a confundir Maria Madalena com Maria, mãe de Jesus. Na história da Igreja,
destacam-se os testemunhos de Santo Ambrósio (340-397), o qual diz que Madalena
poderia ter sido pecadora. Pedro Crisólogo (406-450) diz que Madalena é o símbolo
da Igreja “Santa e Pecadora”. Quanto ao anúncio da ressurreição às mulheres,
Crisólogo afirma: “Neste serviço, as mulheres precedem aos homens, elas que
pelo sexo vêm depois dos homens, por ordem (hierárquica) depois dos discípulos:
mas não por isso estão a significar que os apóstolos sejam mais lentos, pois
elas levam ao sepulcro do Senhor não a imagem de mulheres, mas a figura da
Igreja”. Honório de Autun (1080-c. 1153) atribui a Maria Madalena uma vida
inclinada à libido e, por isso diabólica, quando escreve: “[O Senhor...] nos
colocou diante da bem-aventurada Maria Madalena como exemplo de sua clemência.
Narra-se que esta era a irmã de Lázaro, que o Senhor fez ressuscitar do
sepulcro depois de quatro dias, e foi também irmã de Marta, que com frequência
ofereceu hospitalidade ao Senhor.
Esta Maria foi enviada
para junto ao marido na cidade de Mágdala, mas, fugindo dele, foi para
Jerusalém. Esquecendo-se de sua família, esquecida da lei de Deus, tornou-se
uma vulgar meretriz; e, após se tornar prostíbulo da torpeza, se tornou também,
por conseguinte, sacrário dos demônios; de fato, entraram nela sete demônios
todos juntos, e constantemente a atormentavam com desejos imundos”. Em 1050,
Maria Madalena foi proclamada padroeira de uma abadia de monjas beneditinas. A
ideia seria mostrar que ela se arrependeu e tornou-se eremita.
Na França, é tida como
padroeira dos perfumistas e cabeleireiros. Maria Madalena é celebrada pela
Igreja Católica no dia 22 de julho. Ela é também a padroeira das prostitutas.
Na liturgia devocional da Idade Média, encontram-se Laudes e Completas
dedicadas a Maria Madalena. Ela inspirou muitos pintores, os quais a retratam
como mulher pecadora; penitente; bela e formosa; idosa e solitária; que unge
Jesus; que ampara Maria, a mãe de Jesus; que anuncia o ressuscitado; discípula
que acompanha Jesus em sua agonia. A tradição cristã fez de Maria Madalena uma
prostituta arrependida, fato que não pode ser sustentado nem mesmo pelos
evangelhos canônicos, os quais não mencionam que ela era prostituta. O famoso
texto de Lucas 7,36-50, a pecadora que unge os pés de Jesus, não diz que essa
era Madalena.
A comunidade lucana
coloca, logo a seguir, que Jesus andava por cidades e povoados pregando
acompanhado por mulheres, entre as quais estava Maria Madalena, aquela da qual
ele havia expulsado sete demônios. Caso a prostituta fosse Madalena, por que a
comunidade lucana omitiria seu nome? E, além disso, ela aparece no texto
posterior com adjetivo de ex-possessa. Ou seria isso que levou a Igreja a
identificá-la com a prostituta? Se a comunidade lucana soubesse que a
prostituta que ungiu Jesus era Madalena, ela não teria motivos não dizê-lo.
Situando o texto da pecadora no início da vida pública de Jesus, a comunidade
lucana quis mostrar que todos os pecadores, assim como os que seguem o mestre,
devem ter lugar na comunidade. Foi um erro histórico dos padres da Igreja a
interpretação de Lucas 7,36-50, que foi seguida pela devoção popular e a arte.
Com certeza, essa análise alimentava o espírito machista dos primórdios do
cristianismo. A mulher Madalena ficava subestimada em seu papel de liderança
apostólica.
Temos uma dívida
histórica com ela. Em 1969, a Igreja Católica pronunciou-se reconhecendo o erro
histórico com Maria Madalena e pedindo desculpas pela errônea alcunha de
prostituta. Pouco difundido na época, o documento não teve muita repercussão.
A personagem Maria
Madalena foi tratada, no decorrer da história cristã, como mito de pecadora
redimida. De prostituta, virou santa para morar no imaginário coletivo como
mulher forte e exemplo de vida cristã. Infelizmente, esse foi um bem, que, para
se firmar, teve de fazer uso de inverdades como a história de Maria Madalena, a
prostituta.
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM
Escritor e mestre em Ciências Bíblicas
pelo Pontifício
Instituto Bíblico de Roma
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