quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A Trindade - Capitulo 1 - Precaução contra os hereges. A verdadeira imortalidade. A fé e a compreensão das coisas divinas


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Quem se entregar à leitura do que escrevemos sobre a Trindade, deve ter em conta, primeiramente, que nossa pena está atenta para repelir as falsas afirmações daqueles que, desprezando os princípios da fé, deixam-se enganar por um imaturo e desordenado amor pela razão. Alguns pretendem aplicar às coisas incorpóreas e espirituais as noções adquiridas sobre coisas corpóreas, mediante os sentidos, ou graças à força da razão humana e à potencialidade da investigação; ou ainda, com a ajuda de alguma arte, pretendem medir as coisas espirituais pelas corporais e conjeturar sobre aquelas, como fazem com estas.

Há outros que pensam sobre Deus — se é que pensam alguma coisa —, apoiados na natureza da alma humana ou em seus sentimentos. Desse erro são levados a fixar regras falsas e falazes em suas doutrinas, quando discorrem sobre Deus. Há ainda uma terceira espécie de indivíduos que se esforçam por transcender as coisas criadas, certamente mutáveis, para se aplicarem à substância imutável, que é Deus. 

Onerados, porém, pelo peso da mortalidade, querem fingir saber o que não sabem; mas como não são capazes de conhecer o que almejam, afirmam com todo atrevimento suas opiniões hipotéticas, fecham a si mesmos os caminhos da inteligência, preferindo não se corrigirem de suas falsas afirmações, a modificarem o que defendem.


Esse é o mal dos três grupos de indivíduos aos quais me referi ou seja: os que enfocam o tema de Deus como uma substância corpórea; os que o abordam conforme os seres espirituais, como a alma; e os que não obedecem a nenhum dos dois critérios e emitem opiniões falsas a respeito de Deus. Estão eles tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos não se apóiam nos sentidos corporais nem no espírito criado; nem no próprio Criador. 

Quem julga, por exemplo, que Deus é branco ou louro, engana-se, ainda que de qualquer maneira encontremos esses acidentes no corpo. Quem considera que Deus agora se esquece e depois se lembra, ou têm outras opiniões semelhantes, está totalmente em erro, ainda que de qualquer forma, essas faculdades se encontrem na alma. Quem, porém, pensa que Deus é dotado de tal força que tenha gerado a si mesmo, incorre em maior erro ainda, já que Deus não somente não é assim, e tampouco é uma criatura espiritual ou corporal. Não há criatura alguma que seja capaz de gerar a si mesma para existir.

Com a finalidade de purificar o espírito humano de semelhantes erros a santa Escritura, acomodando-se aos pequenos, não evitou expressões designando esse genero de coisas temporais, mediante as quais nosso entendimento, como que alimentado, pudesse ascender por degraus, às coisas divinas e sublimes. Por isso, empregou palavras tomadas das coisas corporais ao falar de Deus como, por exemplo, quando diz: Protege-me à sombra de tuas asas (Sl 16,8).

E apropriou-se também de muitas expressões referentes ao espírito para significar aquilo que, embora não seja desse modo, era preciso que fosse dito assim, como: Eu sou um Deus ciumento (Ex 20,5), e também: Pesa-me de ter feito o homem (Gn 6,7). Em se tratando de coisas inexistentes, a Escritura não registrou expressão alguma que envolvesse locuções figurativas ou encerrasse enigmas. Daí, que se perdem em afirmações vãs e perniciosas os que se afastam da verdade, abraçando aquela terceira espécie de erro. Conjeturam a respeito de Deus elementos que não se encontram nele mesmo, nem em criatura algumas.

Com elementos próprios das criaturas, a Escritura divina costuma compor como que jogos infantis, com a intenção de que os sentimentos dos simples sejam estimulados, como que passo a passo, à procura das coisas superiores, no abandono das inferiores. 

O que, porém, é dito com propriedade somente a respeito de Deus e que não se encontra nas criaturas, a divina Escritura raramente registra, como o que foi dito a Moisés: Eu sou o que sou, e também: Aquele que é, enviou-me a vós (Ex 3,14). Ainda que o verbo “ser” seja empregado também em relação ao corpo e à alma, a Escritura não o empregaria, se não quisesse dar a essas palavras um sentido todo especial, ao se referir a Deus. 

Do mesmo modo quando o Apóstolo diz: O único que possui a imortalidade, o senhor dos Senhores (1Tm 6,16). Visto que se diz a alma se imortal, como de fato é, a Escritura não diria: “O único”, se a verdadeira imortalidade não fosse a imutável, da qual nenhuma criatura é dotada, já que esta imortalidade pertence somente ao Criador. 

O mesmo dá entender o apóstolo Tiago: Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto, descendo do Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação (Tg 1,17). Há também o que diz Davi: E como uma vestidura, tu as mudas e ficam mudadas; tu, porém, és sempre o mesmo (Sl 101,27-28).

Desse modo torna-se difícil intuir e conhecer plenamente a substância de Deus, que faz as coisas mutáveis sem mudança em si mesmo, e cria as coisas temporais sem qualquer relação com o tempo. Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para podermos contemplar inefavelmente o inefável. 

Ao não conseguirmos ainda essa purificação, alimentamo-nos da fé, somos conduzidos por caminhos mais praticáveis a fim de sermos capazes de chegar a compreender a Deus. Nesse sentido, afirmou o Apóstolo que todos os tesouros da sabedoria e da ciência estão escondidos em Cristo (Cl 2,3), mas apresentou-o aos que, embora renascidos pela graça, são ainda carnais e animais, e portanto tais como crianças. 

Assim, apresenta o Cristo não com o poder divino pelo qual é igual ao Pai, mas na fraqueza humana na qual foi crucificado.Diz textualmente: Pois eu não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. E, prosseguindo: Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e temor (1Cor 2,2-3). 

E mais adiante: Quanto a mim, irmãos, não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão-somente como a homens carnais, como a crianças em Cristo. Dei-vos a beber leite, não alimento sólido, pois não o podíeis suportar. Mas nem mesmo agora o podeis (1Cor 3,1-2).


Quando se fala tudo isso a certas pessoas, elas são tomadas de furor e consideram-no um insulto. Preferem acreditar não terem o que dizer os que isso dizem, antes de se considerarem a si mesmos incapazes de compreender o que lhes é dito. Às vezes, lhes apresentamos certa argumentação, não justamente o que pedem quando investigam sobre Deus, pois eles não têm capacidade de compreendê-lo — nem nós talvez tenhamos para compreendê-lo e explicá-lo. 

Somente expomos alguns argumentos que demonstram a sua incompetência e inido-neidade para entenderem o que exigem. Essas pessoas como não ouvem aquilo que desejam — ou pensam que agimos com astúcia para ocultar nossa incapacidade, ou talvez que agimos com maldade, por lhes invejarmos a competência —, indignadas e confusas, afastam-se de nós.

Referências: Patrística - Santo Agostinho - A Trindade - Vol. 7. Editora Paulus. 
  




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