A reportagem é de Alberto López, publicado por El País, 17-07-2018. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O físico e matemático
belga, que combinou ciência e fé em seus trabalhos, foi o primeiro a falar da
origem do universo em expansão e com um passado infinito
Ciência e fé não
costumam dar bons casamentos, mas há exceções, como a do cientista e sacerdote
católico belga Georges Lemaître, que não é apenas um exemplo reconhecido pela
comunidade científica, mas que, com grande humildade, foi capaz de corrigir o
próprio Albert Einstein. Estamos falando do padre da Teoria do Big Bang, que
tentou demonstrar a origem do universo.
Sem renunciar à sua fé
católica, Lemaître falou de um passado infinito do universo, mas que não
entrava em contradição com sua crença em um Deus criador do mundo, já que tanto
Aristóteles quanto São Tomás de Aquino mostraram que a criação de um universo
não precisaria de um começo no tempo.
Sua precocidade para a
ciência, destacando-se em matemática e física, era paralela à sua vocação, já
que aos 9 anos ele decidiu que seria sacerdote. Ele alcançou sucesso em ambos
os âmbitos graças ao conselho de seu pai para que primeiro estudasse e depois
fosse ordenado padre. Ele conseguiu bolsas de estudo, viajou pelo mundo e
obteve reconhecimento, mas sua humildade permitiu que as honras e fama de suas
descobertas e contribuições para a astronomia e astrofísica fossem creditadas a
outros.
Talvez a definição mais
precisa de Lemaître e suas descobertas tenha sido dada pelo próprio Albert Einstein,
ao escutá-lo em uma conferência na Califórnia. Em pé, ele afirmou que a teoria
da origem do universo "é a mais bela e satisfatória explicação da Criação
que em algum momento eu tenha escutado".
Georges Henri Joseph
Édouard Lemaître nasceu em 17 de julho de 1894, na localidade belga de
Charleroi. Ele era o mais velho entre os quatro irmãos e desde muito cedo
mostrou sua precocidade em matemática e física, mas também em sua vocação
pessoal, anunciando a seus pais, aos nove anos de idade, que queria ser padre.
Encorajado por seu pai,
Georges Lemaître decidiu estudar primeiro, antes de entrar no seminário, e
matriculou-se na Escola Superior Jesuíta do Sagrado Coração, em Charleroi, onde
destacou-se em química, física e matemática. Em 1910, seu pai conseguiu um novo
emprego e mudou-se com a família para Bruxelas. O jovem Lemaître, já com 16
anos, matriculou-se em outra escola jesuíta, o Colégio Saint Michel, onde seus
professores descobriram suas habilidades excepcionais em matemática e física.
Embora ainda gostasse
da ideia de se tornar padre, Georges decidiu estudar engenharia em vez de
teologia. Em 1911 ingressou na Universidade Católica de Lovaina para fazer o
curso de engenharia. Em julho de 1913, obteve o diploma e começou a trabalhar
como engenheiro de minas.
A Primeira Guerra
Mundial forçou-o a parar seus estudos e servir como voluntário no exército
belga, alcançando o posto de Primeiro-Sargento. Por sua bravura, foi
condecorado com a medalha da Cruz de Guerra, além de ter sido expulso de uma
missão após ter dito ao instrutor que seus cálculos balísticos estavam errados.
No entanto, as atrocidades vistas na guerra amplificaram sua vocação
sacerdotal. Algum colega de aula viria a recordar posteriormente que sua
vocação de fé e da ciência se mantinham em tamanha sincronia que ele era visto
por aí lendo o livro de Gênesis da Bíblia da mesma maneira que lia artigos de
equações de físicos franceses.
Retomou seus estudos e
em 1920, aos 26 anos, foi premiado com a mais alta distinção, um doutorado em
Ciências Matemáticas por sua tese 'A aproximação de funções reais de várias
variáveis'. Georges Lemaître também obteve um bacharelado em filosofia baseado
no sacerdote italiano do século XIII, São Tomás de Aquino.
Seu passo seguinte foi
dar início à sua caminhada para tornar-se padre, ao ingressar na Casa de Saint
Rombaut, em outubro de 1920. Seus professores, notando seu interesse contínuo
em matemática e física, sugeriram que ele estudasse o trabalho de Albert
Einstein. Lemaître assim o fez, aprendendo sobre o cálculo do tensor e a
relatividade geral dos livros escritos pelo famoso astrônomo matemático Arthur
Eddington.
Em 1922, Lemaître
apresentou a tese 'A Física de Einstein', que rendeu-lhe uma bolsa de estudos
do governo belga e a possibilidade de ir para a Universidade de Cambridge
(Inglaterra), como pesquisador de astronomia. Quase em paralelo, foi ordenado
sacerdote em setembro de 1923, aos 29 anos. No entanto, ao invés de exercer
como padre em uma paróquia ou colégio, Lemaître utilizou a bolsa para estudar a
teoria da relatividade geral e trabalhar pessoalmente com Eddington, que
sugeriu a Lemaître que começasse a trabalhar em um doutorado sobre o universo.
Eddington pediu a
Lemaitre que aplicasse as regras da relatividade geral ao conteúdo de seu trabalho
para ver quais seriam os resultados. Lemaître descobriu duas soluções para o
problema de Eddington: a primeira consistia em uma proposta feita por Einstein,
em 1917, de um universo fechado, estável e estático, cuja densidade de energia
em massa fosse constante; a segunda estava relacionada com a proposta de Willem
de Sitter, também em 1917, de um universo cujo comportamento em grande escala
fosse dominado pela constante cosmológica (a densidade de energia do espaço
vazio).
Georges Lemaître cruzou
o Atlântico para conduzir pesquisas na Universidade de Harvard e também
matriculou-se como aluno para um doutorado em Física no MIT (Instituto de
Tecnologia de Massachusetts). Durante sua estada nos Estados Unidos, viajou
muito e conheceu os mais importantes astrônomos e físicos do país, incluindo
Forest Ray Moulton, William Duncan MacMillan, Vesto Slipher, Edwin Hubble e
Robert Millikan.
Georges retornou à
Bélgica no verão de 1925 e, apoiado e recomendado por Eddington, foi nomeado
professor associado de matemática na Universidade Católica de Lovaina. Em 1927,
defendeu sua tese no MIT: 'O campo gravitacional em uma esfera fluida de
densidade invariante uniforme, segundo a teoria da relatividade'.
Neste novo papel de
pesquisador e divulgador, Georges Lemaître realizou a derivação do que hoje é
conhecida como a Lei de Hubble, que relata a velocidade com que uma galáxia se
afasta e a sua distância. A famosa Conferência Solvay de 1927 contou com a presença
da maioria dos principais físicos. Einstein também participou e falou com
Lemaître, dizendo-lhe que suas ideias já haviam sido apresentadas por
Friedmann, em 1922. Além disso, disse-lhe que, por mais que acreditasse que
suas soluções para as equações da relatividade geral estivessem matematicamente
corretas, traziam soluções que não eram fisicamente possíveis. Especificamente,
Einstein disse-lhe: "Seus cálculos estão corretos, mas sua compreensão da
física é abominável".
Einstein não estava
sozinho ao achar as ideias de Lemaître inaceitáveis. Pelo contrário, essa era a
opinião de quase todos os cientistas. No entanto, em 1929, Hubble publicou um
trabalho que apresentava grandes evidências de um universo em expansão,
contradizendo a teoria de um universo estático, até então aceita.
Eddington e outros
membros da Real Sociedade Astronômica (Royal Astronomical Society) começaram a
trabalhar para tentar resolver o problema originado pela discrepância entre a
teoria e a observação, com uma parte da teoria de Lemaître que os cientistas -
incluindo Eddington - acharam impossível de aceitar: como foi que o universo
teve um começo em um tempo finito no passado, da mesma forma que a religião
católica defende no livro de Gênesis?
Lemaître respondeu às
objeções a sua teoria em um documento publicado na revista Nature, em maio de
1931. "Se o mundo começou com um único quantum, as noções de espaço e
tempo não teriam nenhum significado no princípio; só começariam a ter algum
significado sensato quando o quantum original fosse dividido em um número
suficiente de quanta. Se esta sugestão estiver correta, o começo do mundo
aconteceu um pouco antes do começo do espaço e do tempo". Em realidade,
Lemaître sempre expressou que era importante manter uma separação entre as
idéias científicas e as crenças religiosas sobre a criação.
Esta foi a primeira
formulação explícita da Teoria do Big Bang, atualmente aceita e que naquele
momento também era aceita pela maioria dos cientistas e a qual Georges chamou
de "hipótese do átomo primordial". Em 1933, Einstein e Lemaître
disponibilizaram-se a ministrar uma série de conferências na Califórnia. Depois
de ouvir Lemaître explicar sua teoria em um desses seminários, Einstein
levantou-se e disse: "Esta é a mais bela e satisfatória explicação da
Criação que em algum momento eu tenha escutado".
As ideias de Georges
Lemaître chegaram à imprensa popular, que o descreveu como o principal líder do
momento. Um artigo no 'New York Times' mostrou uma foto dele e Einstein com a
legenda: "Eles têm um profundo respeito e admiração um pelo outro". E
é o fato de que Lemaître tenha sido tanto um cientista quanto um padre católico
que gerou certo fascínio na imprensa popular, até o ponto em que um jornalista
escreveu acerca dele: "Não há conflito entre religião e ciência, repete
Lemaître diversas vezes... Seu ponto de vista é interessante e importante não
apenas porque ele é um padre católico ou um dos principais matemáticos e
físicos de nosso tempo, mas porque ele é ambos".
O maior opositor das
hipóteses de Lemaître foi o astrônomo inglês Fred Hoyle, um dos arquitetos do
modelo Estacionário. Na verdade, foi ele quem deu seu nome à teoria do Big Bang
em uma entrevista de rádio para a BBC e o fez de maneira depreciativa.
Para o sacerdote belga
Georges Lemaître, a história do universo divide-se em três períodos: o primeiro
é chamado de "a explosão do átomo primitivo", segundo o qual há cinco
bilhões de anos existia um núcleo de matéria hiperdensa e instável que explodiu
sob a forma de super-radioatividade. Esta explosão propagou-se durante um
bilhão de anos e os astrônomos percebem até hoje seus efeitos sobre os raios
cósmicos e as emissões X.
Depois vem o período de
equilíbrio ou o universo estático de Einstein. Ele afirma que, após a explosão,
estabelece-se um equilíbrio entre as forças de repulsão cósmicas na origem do
acontecimento e as forças de gravitação. É durante esta fase de equilíbrio -
que dura dois bilhões de anos - que se formam nós que dão origem às estrelas e
galáxias.
Finalmente, acontecem
os períodos de expansão, iniciados há 2 bilhões de anos, que demonstrariam que
o universo está se expandindo a uma velocidade de 170 quilômetros por segundo
de maneira indefinida.
Em 1948, George Gamov
propôs uma nova descrição do começo do universo. E, embora ele seja considerado
atualmente como o pai da teoria do Big Bang, as linhas mestras já estavam
presentes de uma maneira muito clara na cosmologia de Lemaître.
O renomado padre belga
obteve vários cargos na Pontifícia Academia das Ciências, sendo assessor
pessoal do papa Pio XII e presidente da mesma em 1960. Em 1979, durante o
discurso do Papa São João Paulo II à Pontifícia Academia das Ciências, por
ocasião da comemoração do nascimento de Albert Einstein, ele citou algumas
palavras de Lemaître sobre a relação entre a Igreja e a ciência:
"Por acaso a
Igreja poderia ter necessidade de ciência? Não: a cruz e o Evangelho lhe
bastam. Mas nada que seja humano é alheio ao cristianismo. Como poderia a
Igreja se desinteressar na mais nobre das ocupações estritamente humanas: a
investigação da verdade?"
Ao fim da sua vida,
Georges Lemaître dedicou-se cada vez mais aos cálculos numéricos. Seu interesse
pelos incipientes computadores e pela informática acabou por fasciná-lo
completamente.
Ele morreu na cidade
belga de Lovaina, em 20 de junho de 1966, aos 71 anos, dois anos depois de ter
escutado a notícia da descoberta da radiação cósmica de fundo de microondas
cósmicas, que era a prova definitiva de sua teoria astronômica fundamental do Big
Bang.
O nome em uma cratera
na Lua e em um veículo espacial da Agência Espacial Europeia (a ATV5), que nem
sequer existe mais, são dois reconhecimentos quase insignificantes para a
estatura humana e sua contribuição para a compreensão da origem do universo que
nos acolhe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário