Por: Padre Paulo Ricardo
Entenda o que significa
esta expressão e como a filáucia pode se tornar doentia
É próprio do homem
amar, como é próprio da luz iluminar. Essa verdade ressoa em nossos corações
como algo evidente e, ao mesmo tempo, difícil de acreditar. Ao ouvi-la, sentimos
um forte apelo para alçar voo na arriscada aventura de amar. Dentro de nós –
melhor ainda, diante dos nossos olhos –, encontramos a evidência patente de
nossa fragilidade: uma espécie de força que nos leva a chafurdar na lama. A
grandeza de nosso chamado contrasta clamorosamente com a miséria de nossa
situação.
Desde os séculos mais
remotos, a humanidade perplexa percebe essas duas tendências contraditórias,
mas não consegue as explicar. Nós, cristãos, no entanto, aprendemos a origem
dessa contradição por meio da única realidade que poderia esclarecê-la: a
Revelação.
A Revelação nos ensina:
o homem é bom, mas está mal, ou seja, o homem não é uma doença, mas está
doente. E seu estado de doença espiritual requer uma cura.
Qual seria então a
primeira consequência deste estado doentio? Qual é a mãe de todas as nossas
doenças espirituais? Segundo os Santos Padres, especialmente São Máximo o
Confessor (580-662), na raiz de todos os pecados está uma doença espiritual
chamada filáucia.
Significado da palavra
filáucia
De origem grega (philía
+ autós), a palavra filáucia designa o amor que uma pessoa tem por si mesma, o
amor-próprio. A definição etimológica, no entanto, não é suficiente. Ao
afirmarmos que a filáucia é sinônimo de amor-próprio, algumas pessoas poderiam
ser induzidas a pensar erroneamente que se trata, necessariamente, de uma
espécie de egoísmo, mas não é assim.
O significado
originário da palavra filáucia é positivo e trata-se de uma virtude. O
amor-próprio não é uma invenção malévola do demônio ou do homem pecador. É isso
mesmo: o amor-próprio foi criado por Deus e pertence à natureza sadia do homem,
como Deus a sonhou.
Por isso, não é de se
espantar que o próprio Jesus (cf. Mt 22,37-39), depois de apresentar o
mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas (cf. Dt 6,5), faça questão de
acrescentar o preceito de amar ao próximo tendo como medida o amor por si
mesmo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18).
Ora, Nosso Senhor não
canonizaria o egoísmo. É verdade que existe uma forma doentia de a pessoa amar
a si mesma e é a respeito deste amor desordenado que trataremos neste capítulo.
Antes de falarmos da doença do egoísmo, porém, precisamos reconhecer que existe
uma forma sadia de o homem se amar.
Filáucia virtuosa
Como então funcionaria
o coração de um homem sadio? Como é possível ter um amor-próprio adequado e
belo? Antes de tudo, o que se deve constatar é que o amor de si não é o
primeiro passo. Se pensarmos em nossa história pessoal, com sinceridade e
profundidade, concordaremos com São João: antes de qualquer amor surgir em
nosso coração, nós fomos amados (cf. 1Jo 4,10). Deus nos amou primeiro e o
nosso amor será sempre uma resposta, um segundo passo. Disso se compreende por
que, no coração de um homem sadio, não pode faltar essa resposta. O amor a Deus
não é apenas uma das tantas qualidades do coração do homem: é a primeira e mais
importante de todas as qualidades, pois é a primeira verdade que Deus revela a
nosso respeito. Santo Agostinho (354-430) nos recorda que o ser do homem foi
feito para responder ao amor de Deus, quando diz: “Senhor, fizestes-nos para
vós e o nosso coração está inquieto, enquanto não repousar em vós”.
Por isso, amar a Deus
não é um luxo, um acessório dispensável, mas a realização de nosso próprio ser.
Assim como é natural que uma videira dê fruto ou que uma abelha produza mel, é
natural que um homem saudável ame a Deus. O primeiro mandamento – “amar a Deus
sobre todas as coisas […]” – não é uma exigência de um Deus ciumento e caprichoso.
É o conselho de um Pai amoroso que nos ensina o caminho da felicidade.
A consequência é
lógica: se amarmos a Deus de todo o nosso coração, estaremos, de modo indireto,
amando a nós mesmos, visto que não é possível uma pessoa amar a si mesma e
odiar a fonte do seu próprio ser. Seria um contra-senso; uma atitude semelhante
a meter a enxada nos próprios pés, ou cortar o galho sobre o qual se está
sentado. Ao amar a Deus, a pessoa demonstra que ama a si mesma.
Filáucia doente
A partir desse quadro
positivo, compreendemos o que há de errado conosco, uma vez que a doença é
sempre a desordem de algo positivo, ou seja, uma disfunção do organismo
saudável. É muito importante, ao longo de todo esse livro, nunca perdermos de
vista o fato de que a doença é sempre uma perversão da saúde. Por trás do
pecado sempre existe uma realidade positiva, um dom de Deus, que está sendo
usado de forma prejudicial e destruidora. O mal é sempre a perversão de um bem.
O diabo não tem o poder
de criar. Ele sabe apenas arremedar o Deus Criador, e, ao perverter as coisas
criadas, como uma espécie de “macaco de Deus”, imita grotescamente as obras de
Nosso Senhor. O egoísmo, a filáucia doentia, é um arremedo da filáucia
virtuosa.
O livro do Gênesis nos
recorda que, por sedução da serpente, o homem começa a amar a si mesmo de forma
desordenada. “Sereis como Deus” – promete o pai da mentira. E a partir do
momento em que o homem se deixa enganar por esta falsa promessa, ele entra numa
rivalidade invejosa com Deus, como se Ele fosse um inimigo, o obstáculo para
sua felicidade. Movido por este amor-próprio equivocado, o homem se revolta
contra sua própria fonte. Começa a tratar Deus como seu inimigo e dele se
esconde por trás dos arbustos (cf. Gn 3,8).
São Máximo descreve a
forma como a filáucia doentia afetou nossos primeiros pais. O homem volta suas
costas para Deus, para sua luz, e mergulha na matéria em busca de uma
felicidade sem Deus. O primeiro pai, Adão, cego por não ter dirigido o olhar
para a luz divina com o olho da alma, afundando as duas mãos na lama da
matéria, nas trevas de sua ignorância, voltou-se completamente para as coisas
sensíveis e a elas se dedicou inteiramente.
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