Aleteia Brasil
Como o Santo Pobrezinho inspirou uma das mais
famosas orações da história, rezada até por ateus: “Senhor, fazei de mim
instrumento da vossa paz”
São Francisco de Assis é um dos santos mais
conhecidos e queridos do mundo, admirado por crentes e não crentes em todos os
recantos da Terra. Não é para menos: um santo que não apenas pregou, mas viveu
e testemunhou radicalmente o Amor de Deus por toda criatura é alguém que sempre
inspira e fascina.
Graças a essa inspiração e fascínio, no entanto, ele
é também um dos santos mais envolvidos em lendas e falsas atribuições, no geral
positivas e bem intencionadas.
Um exemplo é a chamada “Oração de São Francisco”,
também chamada de “Oração Simples” e de “Oração da Paz“, que certamente é muito
digna do Pobrezinho de Assis: de fato, todos a atribuem a ele.
Só que…
Não, a “Oração de São
Francisco” não foi composta por São Francisco.
Ela é de um autor anônimo que viveu faz apenas
um século.
Mas, se não é de São Francisco, por que ficou tão
incrivelmente famosa como sendo dele?
Porque de fato consegue transmitir com grande acerto
a alma de São Francisco. Ele não a escreveu, mas a viveu e testemunhou: ele a
inspirou com sua vida! Nada mais justo que continuar a chamá-la de “Oração de
São Francisco“, mas com a consciência de que, muito mais que ser um mero texto,
ela é um tributo a um testemunho que foi dado com a vida!
Que história é essa?
Esta bela oração remonta a dezembro de 1912, quando
foi publicada na revista La Clochette, criada pelo sacerdote e jornalista
Esiher Suquerel (+ 1923). É possível que ele mesmo tenha sido o autor da prece,
mas não há certeza.
Em 1913, a oração foi descoberta por Louis Boissey
(+ 1932), apaixonado pelo tema da paz, e, em janeiro, publicada nos Annales de
Notre Dame de Paix, da França, citando como fonte a revista La Cloclette. No
mesmo ano, Estanislau de la Rochethoulon Grente (+ 1941), fundador de Le
Souvernir Normand, publicou-a em sua revista.
Em 20 de janeiro de 1916, apareceu no L’Osservatore
Romano, segundo o qual Le Souvenir Normand havia enviado ao Santo Padre “o
texto de algumas orações pela paz. Entre elas, compraz-nos reproduzir uma,
dirigida especialmente ao Sagrado Coração. Eis aqui o texto, com sua comovente
simplicidade”. Em 3 de fevereiro do mesmo ano, La Croix de Paris dava a
conhecer que, em 25 de janeiro, o cardeal Gasparri havia escrito ao marquês de
La Rochethulon et Gante agradecendo-lhe pelo envio feito à Sua Santidade. Três
dias depois, o mesmo jornal reproduziu o texto publicado por L’Osservatore
Romano.
Foi naqueles dias que o capuchinho Etienne de Paris,
diretor da Ordem Terciária, fez imprimir em Reims uma imagem de São Francisco,
com a invocação ao sagrado Coração em seu verso. No rodapé, sublinhava que
aquela oração, retirada de Le Souvenir Normand, era uma síntese perfeita do
ideal franciscano que precisava ser promovido na sociedade da época.
Os primeiros que relacionaram a oração a São
Francisco foram os Chevaliers de la Paix, ou Cavaleiros da Paz, uma organização
protestante, às vésperas do 7º centenário da morte do santo (1926). A partir de
1925, a oração começou a ser difundida pelo mundo afora, a partir dos Estados
Unidos e do Canadá. Seguiram-nos os países germânicos. Na mídia católica
francesa, começaram a atribuí-la a São Francisco em 1947. Na segunda metade do
século XX, a “Oração Simples”, como a chamavam em Assis, começou a tornar-se
popular, sobretudo quando os frades do Sacro Convento a imprimiram em diversas
línguas, sob o seu nome, nas imagens de São Francisco. O resto da história nós
já conhecemos: difusão no mundo inteiro, infinidade de versões em cada língua e
em todas as línguas, devido à diversidade de traduções e “retraduções”, e
muitíssimos cânticos inspirados nela.
Recitada até por ateus
Esta prece se tornou quase a oração oficial dos
escoteiros e das famílias franciscanas; os anglicanos a consideram como a
oração ecumênica por excelência; algumas igrejas e congregações protestantes a
adotaram inclusive como texto litúrgico; ela foi pronunciada em uma das sessões
da ONU; e, ultimamente, está tendo uma grande acolhida entre as religiões não
cristãs, sobretudo desde que Assis se tornou o centro mundial do ecumenismo e
do diálogo inter-religioso. Não faltam ateus que a recitam!
Riqueza de conteúdo
O segredo deste grande sucesso se deve sobretudo à
atribuição a São Francisco, mas também à riqueza do conteúdo, unida à sua
simplicidade; e é precisamente o conteúdo e o título original, “Invocação ao
Sagrado Coração”, que permitem atribuir sua composição a um autor não anterior
ao início do século XX.
Uma fonte de inspiração pode ter sido a seguinte
fórmula de consagração ao Sagrado Coração, promulgada por Leão XIII em 1899 e
recomendada por São Pio X em 1905 para ser recitada anualmente:
“Sede o Rei de todos os que vivem no engano do erro
ou que, por discordarem, de Vós se separaram; chamai-os ao porto da verdade e
da unidade da Fé, para que, assim, em breve, não haja mais que um só rebanho
sob um só Pastor. Sede o Rei de todos os que estão envoltos nas superstições do
paganismo e não recuseis tirá-los das trevas para trazê-los à luz do Reino de
Deus. Obtende, ó Senhor, a integridade e liberdade segura para a vossa Igreja;
dai a todo o povo a tranquilidade da ordem”.
Uma inspiração certamente franciscana
Tinha razão, de qualquer maneira, o pe. Etienne de
Paris quando encontrava nesta oração anônima certa concordância com o espírito
e o estilo franciscanos. Para comprovar isso, é suficiente ler, por exemplo, a
Admoestação 27 de São Francisco, escrita como uma estrofe:
Onde há caridade e sabedoria, não há medo nem
ignorância.
Onde há paciência e humildade, não há ira nem
perturbação.
Onde à pobreza se une a alegria, não há cobiça nem
avareza.
Onde há paz e meditação, não há nervosismo nem
dissipação.
Onde o temor de Deus está guardando a casa (cf. Lc
11,21),
o inimigo não encontra porta para entrar.
Isso é o que faz que a oração seja considerada por
muitos como franciscana e, ainda que seja um erro atribuí-la a São Francisco de
Assis, com certeza ele não se importaria em assiná-la.
E aqui vai ela, sempre merecedora de ser rezada!
A Oração “de São Francisco”
Senhor: Fazei de mim um instrumento de vossa Paz.
Onde houver Ódio, que eu leve o Amor,
Onde houver Ofensa, que eu leve o Perdão.
Onde houver Discórdia, que eu leve a União.
Onde houver Dúvida, que eu leve a Fé.
Onde houver Erro, que eu leve a Verdade.
Onde houver Desespero, que eu leve a Esperança.
Onde houver Tristeza, que eu leve a Alegria.
Onde houver Trevas, que eu leve a Luz!
Ó Mestre,
fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna!
Amém.
Autoria anônima,
atribuída a São Francisco de Assis
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A partir de texto do Frei Tomás Gálvez, publicado
originalmente em FrateFrancesco.org
Bibliografia:
– Willibrord
Christiann van Dijk, Une prière en quête d’auteur, em Evangile Aujourd’hui,
1975, n. 86, 65-70.
– Jerôme Poulenc, L’inspiration moderne de la prière
“Seigneur faites de moi un instrument de votre paix”, em Archivium Franciscanum
Historicum, 68 (1975), 450-453.
– Christian Renoux, La priére pour la paix attribuée
a Sant François: une énigme a résoudre. Les Editions Franciscaines, 9 rue Marie
Rose, 75014-Paris, 2001. La preghiera per la pace attribuita a san Francesco.
Padova, Edizioni Messaggero, 2003, 179 págs.
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