Ruth Manus, via Soma
de todos os afetos
O fato de termos sido
criados com cuidado e afeto pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma
espécie de sensação de que todos devem nos tratar como eles nos trataram.
Tudo começou com uma
colega minha de estágio, há mais de 10 anos, que pediu demissão por acreditar
que “não foi criada para ficar carregando papel”. Sim, carregar papel fazia
parte das nossas tarefas, enquanto ajudávamos o juiz e os demais servidores
públicos com os processos do Tribunal. Acompanhávamos audiências, ajudávamos
com os despachos e, sim, carregávamos papéis entre o segundo e o quarto andar
do edifício.
Os pais da menina
convenceram-na de que ela era boa demais para aquilo. Não importava que nós
fôssemos meninas de 19 anos, no segundo ano da faculdade, sem qualquer
experiência, buscando aprender alguma coisa e ganhar uns poucos reais para
comer hamburguer nos finais de semana. Ela, que tinha a certeza de ser uma joia
rara, foi embora, deixando sua vaga vazia no meio do semestre e sobrecarregando
todos os demais, inclusive eu, sem nem se constranger com isso.
O tempo passou e,
quando eu já era advogada, tive um estagiário de vinte e poucos anos que, três
meses depois de ser contratado, solicitou dois meses de férias. Eu nem sequer
entendi o pedido. Perguntei se ele estava doente ou se havia algum outro
problema grave. Ele me respondeu que não, que simplesmente tinha decidido ir
para a Califórnia passar dezembro e janeiro, pois a irmã estava morando lá e
ele tinha casa de graça. Eu mal podia acreditar no que estava ouvindo. Deixei
ele ir e pedi que não voltasse mais.
Alguns anos depois,
ouvi um grande amigo me dizer que iria divorciar-se. Ele havia casado fazia menos
de um ano, com direito a uma imensa festa, custeada pelos pais dos noivos. Mais
uma vez perguntei se algo de grave tinha ocorrido. Ele me respondeu que “não
estava dando certo”, discorrendo sobre problemas como “brigamos por causa da
louça na pia”, “não tenho mais tempo para sair com meus amigos” e “acho que
ainda tenho muito para curtir”. Me segurei para não dar um safanão na cabeça
dele. Aos 34 anos ele falava como um garoto mimado de 16. Tentava explicar isso
para ele, mas era como conversar com a parede.
Agora foi a vez de uma
amiga minha, com seus quase 30 anos, que me disse que iria pedir demissão pois
fora muito desrespeitada no trabalho. Como sou advogada trabalhista, logo me
assustei, imaginando uma situação de assédio moral ou sexual. Foi quando ela
explicou: meu chefe fez um comentário extremamente grosseiro no meu facebook.
Suspirei e perguntei o que era, exatamente. Ela disse que postou uma foto na
praia, num fim de tarde de quarta-feira, depois do expediente, e o chefe
comentou “Espero que não esqueça que tem um prazo para me entregar amanhã
cedo”. E isso foi suficiente para ela se sentir mal a ponto de querer pedir
demissão de um bom emprego.
Eu não sei bem o que
acontece com a minha geração. O fato de termos sido criados com cuidado e afeto
pelos nossos pais, começou a confundir-se com uma espécie de sensação de que
todos devem nos tratar como eles nos trataram. O chefe, o colega, o marido, a
mulher, os amigos, ninguém pode nos tratar de igual para igual e muito menos
numa hierarquia descendente. Se não for tratado a pão de ló, este jovem adulto
surta, se julga injustiçado e vai embora.
Acho que o mundo
evoluiu e as situações nas quais se tratava alguém com desrespeito são cada vez
menos toleráveis, o que é ótimo. Também é ótimo o fato de sermos uma geração
que busca felicidade e não apenas estabilidade financeira. É bom termos a
coragem de mudar de carreira, de recomeçar, de priorizar as viagens e não a
casa própria.
Mas nada disso
justifica que a minha geração tenha comportamentos tão egoístas, agindo como
verdadeiras crianças mimadas. E o grande perigo é que essas crianças mimadas
têm belos diplomas e começam a ocupar cargos importantes nas empresas e no
setor público. Vamos nos tornar um perigoso jardim de infância, no qual quem
manda não pode ser contrariado e quem obedece também não. Isso não será uma
tarefa fácil.
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