Padre Paulo Ricardo
Como explicar que, por causa de uma telenovela, uma
questão como a ideologia de gênero se torne, de uma hora para outra, a nova
modinha entre os brasileiros?
Não se fala em outra coisa. Desde que a Rede Globo
resolveu aderir ao discurso da ideologia de gênero, colocando uma personagem
“trans-homem-gay” na sua principal telenovela, A Força do Querer, o assunto
voltou a causar sensação na opinião pública, que, levada pelos sofisticados
mecanismos de sedução midiática, se mostra mais uma vez suscetível às campanhas
de “conscientização ética” promovidas pela emissora carioca. Só no Twitter, a
novela das 9 já foi comentada 2,5 milhões de vezes.
Mas o que explica que uma questão como a ideologia
de gênero, repudiada em todo o Brasil nas várias audiências públicas sobre os
Planos de Educação, se torne, de uma hora para outra, a nova modinha entre os
brasileiros? Por que, afinal de contas, as novelas fazem tanto sucesso?
Na história das civilizações, os homens sempre
criaram fábulas para narrar acontecimentos importantes ou transmitir alguma
lição de moral às novas gerações. Mitos como o Labirinto de Cretaou a lendária
figura do Rei Arthur não tinham apenas a tarefa de entreter uma sociedade
fatigada pela rotina do cotidiano, mas também a de oferecer respostas concretas
aos dramas existenciais, de sorte que, olhando para o desfecho dessas
histórias, o homem pudesse superar seus desafios e crescer como pessoa,
conforme explica o mitologista Joseph Campbell: “A função primária da mitologia
e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a
avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a
levá-lo para trás” [1].
Baseado nos estudos de psicanálise, Campbell
concluiu que as figuras míticas seriam, na verdade, produtos da própria
espontaneidade humana, que procura nessas histórias a razão de sua existência,
bem como as respostas éticas e políticas necessárias ao seu sadio desenvolvimento.
Isso explicaria por que os mitos, por mais diferentes que sejam, contam sempre
uma única e mesma história: a jornada do herói — chamado à aventura, iniciação,
auxílio de algum sábio ou amigo, batalhas preparatórias, desafio final, morte e
ressurreição — até o seu retorno à normalidade da vida; porque seriam projeções
da vida real que, como retratam os mitos, também precisa passar por várias
transições de morte e ressurreição. Daí que Joseph Campbell tenha dado ao seu
mais importante livro o sugestivo título de O herói de mil faces.
Essa missão de oferecer os arquétipos adequados ao
comportamento social foi, em nossa época, assumida pelo cinema e pela novela,
como produtos da cultura de massa, isto é, aquilo que é artificialmente
fabricado para o consumo da população. De acordo com o sociólogo Edgar Morin,
“todo um setor das trocas entre o real e o imaginário, nas sociedades modernas,
se efetua no modo estético, através das artes, dos espetáculos, dos romances,
das obras ditas de imaginação” [2]. Eis o motivo de as novelas fazerem tanto
sucesso. Em tese, elas deveriam ser como que um espelho em que cada pessoa
poderia encontrar refletida a própria identidade.
A cultura de massa, explica Morin, “constitui um
corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida
imaginária”, cuja tarefa essencial é a de alimentar “o ser semi-real,
semi-imaginário, que cada um secreta no interior de si (sua alma)” [3]. Desse
modo, os filmes e as novelas repetem as fórmulas típicas das narrativas
mitológicas, apresentando, com leves alterações, sempre uma única estrutura de
roteiro, com o objetivo de prender a atenção do público por meio de um sistema
de “projeção e identificação”. Morin afirma:
Assim, feita de modo estético, a troca entre o real
e o imaginário é, se bem que degradada (ou ainda que sublimada ou demasiado
sutil), a mesma troca que entre o homem e o além, o homem e os espíritos ou os
deuses que se fazia por intermédio do feiticeiro ou do culto. A degradação — ou
o supremo requinte — é precisamente essa passagem do mágico (ou do religioso)
para a estética [4].
Com efeito, os produtos da cultura de massa
transformam-se em um perigoso instrumento de subversão, quando decidem alterar
o sentido da mitologia tradicional para oferecer, em seu lugar, as fantasias
que levam o ser humano para trás. Esses produtos corrompem o coração do homem
que está à procura de arquétipos viris como um Heitor ou um Aquiles e, em vez
disso, encontra o duvidoso “trans-homem-gay”, uma figura absolutamente instável
e sem identidade clara. O efeito desse esquema de manipulação sobre uma
determinada sociedade é devastador, como denuncia Campbell: “Pode ser que a
incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós,
desse auxílio espiritual efetivo (os mitos)”, coisa que nos mantém “ligados às
imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a
fazer as passagens da nossa vida adulta” [5].
O “trans-homem-gay” , longe de oferecer as condições
para que um rapaz se torne um homem maduro, prende-o, ao contrário, às suas
rebeldias de adolescente, época em que seu maior “inimigo” era a própria
família. Por meio de um tratamento super apelativo, os telespectadores são
induzidos a considerá-lo um herói, ao passo que seus pais se tornam objeto de
repúdio, porque não aceitam a mudança do filho. A ideia que fica é esta: a
mudança de sexo é uma coisa absolutamente “tranquila” e “necessária” para a
realização pessoal da personagem, cuja única ameaça ao horizonte de sua
felicidade seria, como sugere a novela, a “homofobia” dos familiares. Acontece
exatamente o que Edgar Morin denuncia como um dos efeitos malignos da cultura
de massa: ela “destituiu parcialmente a família, a escola, a pátria, de seu papel
formador, na medida em que os ‘modelos’ do pai, do educador, dos grandes homens
foram vencidos pelos novos modelos de cultura que lhes fazem concorrência” [6].
Em qualquer sociedade mentalmente sadia e consciente
do alto número de suicídios entre “transgêneros” — causados, atenção, pela
angústia que o processo de mudança de sexo gera na intimidade da pessoa, não
por uma suposta homofobia —, a novela A Força do Querer seria ridicularizada.
Mas estamos no Brasil e “a novela”, como declarou a escritora Glória Perez à
revista Veja, “é a crônica do nosso cotidiano” [7]. Ou, ao menos, busca sê-lo.
A influência das produções globais sobre o
comportamento dos brasileiros está para além do mero entretenimento. Folhetins
como Roque Santeiro, Verão Vermelho e, mais recentemente, Amor à Vida tiveram a
missão de introduzir na sociedade debates a respeito do celibato, do divórcio e
do homossexualismo, temas antes considerados “tabus” para a maioria da
população. Não por acaso, uma pesquisa realizada em 2008 pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento revelou que as novelas da Rede Globo estão
intimamente relacionadas com a redução da natalidade e com o aumento no número
de separações no país. Agora é a vez da ideologia de gênero.
“Se no futuro alguém pesquisar como se vivia no
Brasil”, enfatizou Glória Perez à revista Veja, “será ela (a novela) que vai
ensinar isso” [8]. Que as próximas gerações tenham pena de nós!
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